Umberto Eco, sobre Bibliotecas

Este é um excerto de um texto de Umberto Eco, sempre provocatório e genial onde, com aguda ironia, nos caracteriza uma boa biblioteca. Podem achar excessivo mas eu ainda me lembro bem de que já foi assim e não há tanto tempo como isso e não era por não haver computadores...

a) Os catálogos devem estar divididos ao máximo: deve proceder-se com muito cuidado à separação do catálogo dos livros do catálogo das revistas, e à deste em relação àquele por temas, assim como à separação dos livros de aquisição recente dos livros de aquisição mais antiga. Se possível, a ortografia nos dois catálogos (antigos e recentes) deve ser diferente; (...)

b) Os temas devem ser decididos pelo bibliotecário. Os livros não devem incluir no cólofon nenhuma indicação referente aos temas nos quais deve ser catalogados.

c) As cotas devem ser intranscritíveis, e se possível em grande quantidade, de modo a que o leitor que preencher a ficha nunca tenha espaço para escrever a última denominação e a considere irrelevante, para que em seguida o funcionário lhe possa devolver a ficha para a preencher novamente.

d) O espaço de tempo decorrido entre o pedido e a entrega do livro deve ser muito longo.

e) Não se deve dar mais de um livro de cada vez.

f) Os livros entregues pelo funcionário por terem sido previamente requisitados, não podem ser levados para a sala de consulta, isto é, há que dividir a própria vida em dois aspectos fundamentais, um para a leitura e outro para a consulta. A biblioteca deve desencorajar a leitura cruzada de vários livros porque provoca estrabismo.

d) Deve existir, de preferência, uma ausência total de máquinas fotocopiadoras; no entanto, se houver alguma, o acesso a ela deve ser muito demorado e cansativo, os preços superiores aos da livraria e os limites de cópias reduzidos a não mais de duas ou três páginas.

h) O bibliotecário deve considerar o leitor como um inimigo, um vadio (senão estaria a trabalhar), um ladrão potencial.

i) Quase todo o pessoal deve ser afectado por limitações de ordem física. Trata-se de uma questão muito delicada, em relação à qual não pretendo criar nenhuma ironia. É um dever da sociedade dar possibilidades e saídas profissionais a todos os cidadãos, mesmo àqueles que não estiverem na força da idade ou no auge das suas condições físicas. Há bibliotecas (...) onde a máxima atenção é dispensada aos utentes deficientes: planos inclinados, casas de banho especializadas, ao ponto de tornarem perigosa a vida aos outros, que escorregam nos planos inclinados. (...)

j) O departamento consultivo deve ser inatingível.

k) O empréstimo de livros deve ser desencorajado.

l) O empréstimo de livros entre bibliotecas deve ser impossível e, em todo o caso, levar meses. O melhor, no entanto, é garantir a impossibilidade de conhecer aquilo que há nas outras bibliotecas.

m) Em consequência de tudo isto, os furtos devem ser facílimos.

n) Os horários devem coincidir absolutamente com os horários de trabalho, devendo preventivamente ser discutidos com os sindicatos: encerramento total aos Sábados, aos Domingos, à noite e à hora das refeições. O maior inimigo da biblioteca é o estudante-trabalhador; o seu maior amigo é Don Ferrante, alguém que tem a sua biblioteca pessoal, que não precisa, portanto, de ir à biblioteca e que, quando morre, a deixa em herança.

o) Não deve ser possível restaurar as forças dentro da biblioteca, de maneira nenhuma e, seja como for, também não deve ser possível restaurá-las fora da biblioteca sem primeiro se terem depositado todos os livros requisitados, a fim de terem de ser novamente requisitados depois de se ter tomado um café.

p) Não deve ser possível encontrar o mesmo livro no dia seguinte.

q) Não deve ser possível saber quem levou emprestado o livro que falta.

r) De preferência, nada de sanitários.

s) E para terminar coloquei também um requisito: o ideal seria que o utente não pudesse entrar na biblioteca; admitindo que entre , no usufruto caprichoso e antipático de um direito que lhe foi concedido com base nos princípios de oitenta e nove (revolução francesa) mas que, todavia, não foi ainda assimilado pela sensibilidade colectiva, em todo o caso não deve, nem deverá nunca, à excepção das rápidas travessias da sala de leitura, ter acesso aos penetrais das estantes.

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